O trabalho como ilusão e como perversão
"A cada porcaria que sai de minha boca
eu me sinto mais limpo"
Pierre Louys
O
desemprego, longe de caracterizar um problema social, bem que poderia ser o
sinal ou o signo de que, finalmente, a humanidade caminha para sua emancipação.
Mas não.
Os
próprios desempregados, manipulados e mobilizados pela TV, pelos sindicatos,
associações e igrejas de todos os matizes, vão às ruas exigir nada mais nada
menos do que trabalho. Queremos trabalhar! Queremos trabalhar! Queremos
trabalhar!!! Já os que trabalham, quando fazem greve, a intenção não é a
conquista do lazer, mas pelo contrário, o fortalecimento dos vínculos com o
trabalho e a solidificação das garantias de que estarão empregado por toda a
vida. A grande maioria, para o cúmulo da perversidade, faz de tudo para
permanecer trabalhando depois de aposentada, dando a impressão de que a própria
escravidão se torna vício, de que o ócio sufoca e, por fim, de que o homem faz
de tudo para e com os outros, no intuito de jamais deparar-se consigo mesmo. De
tudo o que os gregos e romanos escreveram, o que mais fascina é exatamente o
desprezo que (de Heródoto e Xenofonte a Cícero) sempre expressaram pelo
trabalho. Para eles, que haviam herdado esse saber dos egípcios, o trabalho
pertencia por direito aos escravos, e eram tão rigorosos nisto, que não
permitiam nem mesmo que suas mulheres costurassem, ou tecessem, para não
rebaixar sua nobreza. Em sua famosa «Econômica», Xenofonte afirma que as
pessoas que se entregam ao trabalho manual não alcançam jamais uma boa posição.
Cícero, por sua vez, falando dos ofícios, estava seguro que aqueles que
ofereciam seu trabalho em troca de dinheiro, além de vender a si mesmos como
prostitutos, se colocavam na categoria de párias. Na obra de Marx (desse homem
que recopilou sutilmente os gregos), o que existe de mais interessante é o
projeto que prevê não apenas uma melhora nas relações de trabalho (como
entendem os sectários), mas a possibilidade de suprimi-lo e de riscá-lo
definitivamente do mapa. Nesse particular, por mais ridículo que pareça, é
necessário reconhecer que grande parte da elite e da aristocracia mundial, sem
necessariamente ser marxista, parece ter conquistado o que ele tanto teorizava,
já que não trabalha há mil anos. Já que não fazem nada. Conquistaram o direito
de permanecer afastados do trabalho para sempre, mergulhados no ócio, na
preguiça, nas banheiras e nas pilhas de dólares. Quando fazem alguma coisa, é
mais para exercer o poder ou para desatrofiar a memória. Investem em
relojoarias, em lojinhas, em clínicas, em criações de vacas, em garimpos, em
frotas de caminhões, em bazares, jóias, fábricas, fazendas, imóveis e outras
porcarias que o populacho necessita. Investem sem sair de suas mansões e ficam
de longe computando os dividendos, privatizando os mais variados bens do
planeta, jogando baralho e vivenciando na prática, o marxismo utópico. Para
esses barões do ócio, as duas instituições que na contemporaneidade são o
símbolo máximo de toda filosofia greco-romana se chamam: Bolsa de valores e
Club Mediterrané. Oito, sete, seis, cinco horas da manhã!
O
mundo proletário acorda o mais cedo possível para ligar as turbinas de sua
servidão, preso e iludido pelos antigos dogmas e pelo antigo moralismo de que
só o trabalho enobrece e dignifica. Mas enobrece como, se a própria nobreza
nunca trabalhou? Dignifica como, se na imensidão da turba trabalhadora só se
pode perceber humilhação e escravismo? É imensamente doloroso passar pelos
fundos das construções, lá pelas três horas da tarde, na hora em que o sol
derrete o cérebro, e ver a dedicação e o martírio desses homens que dão suas
vidas em troca de uns grãos de arroz e da promessa falsa de que o trabalho
eleva.
No
Conjunto Nacional, apesar do tipo dos trabalhadores ser outro, o drama é o
mesmo: chefetes, subalternos, autônomos e outros gêneros de escravos, com
roupas de mórmons, que correm em alta velocidade, que desfilam de lá para cá
como se fossem donos de alguma coisa ou como se o planeta estivesse em chamas.
As calças suadas no traseiro, olheiras de abatimento e uma falsa serenidade na
fala enquanto lá na calçada, um carro forte espera, para transportar ao banco
os lucros do dia... Nos ministérios o tédio e a solidão tornam a jornada de
oito horas ainda mais vil. O relógio, o calendário, a folha de ponto, a
cumplicidade com os governos de turno que, de tão tenebrosos, nem sequer
permanecem na história... E a tudo isto se costuma chamar trabalho. Os ônibus
chegam de longe trazendo homens e mulheres sonolentos que exibem um crachá no
peito e que entram monotonamente nos prédios, em filas, marchando, como se
estivessem a caminho do matadouro, e que vão consagrar seu tempo e sua vida na
edificação de um mundo absurdo que não lhes diz respeito em nada... E é
impressionante observar que praticamente todas as sociedades ditas modernas,
padecem desse mal. Do mal de trabalhar e de fazer trabalhar.
Hoje
são oito horas, mas ontem chegaram a ser vinte. As correntes foram substituídas
pelos relógios e a náusea trabalhista pela ilusão ingênua de que o trabalho,
além de tudo é também um truque terapêutico. Para isto, lógico, existem os
sociólogos, os psicólogos, os administradores e os vigias que garantem o
condicionamento e a ordem, para que o teatro produtivo não se degenere em
«vagabundagem».
No
lugar da paixão a produção.
E
depois, por mais sutil que seja seu funcionamento, a ordem repressiva tem no
trabalho e nas regras que o regulamentam o melhor de seus instrumentos. Para
quem aceita servil o peso das 44 horas semanais, alguém sem rosto e sem
identidade lhe concederá um título de cidadania. Aos outros, aos que, pela
razão que for, descambarem para a preguiça e para o ócio, a mesma entidade se
apressará em sufocá-los. Ah, o trabalho, o suor e a fadiga!
No
campo de Concentração Nazi de Theresienstadt, na Bohème, os prisioneiros podiam
ler: Le travail c¹est la liberté.
Mentira.
Quem trabalha o faz sempre para um patrão, seja ele pessoa física ou jurídica.
Num extremo o antigo opressor feudal, no outro o santo Estado moderno. Apesar
dos disfarces, o discurso é o mesmo.
Entre
os antigos regimes com campos de trabalho forçado e os governos neo-liberais da
atualidade não há nada que seja verdadeiramente diferente. Confúcio, Nero,
Mao-Tsé-Tung, Kennedy, a Encíclica Papal, o Fugimore e o Fernando Henrique,
todos são sal de um mesmo saco, continuadores da mesma política e da mesma
idiossincrasia escravocrata. Para todos eles, de Pôncio Pilatos a Strossner, o
trabalho entra no cotidiano da existência invariavelmente como uma necessidade
primordial. Mas todo mundo percebe que por debaixo de suas idéias e de seus
discursos diplomáticos subjaz sempre e sempre tanto a neurose da produção como
a apologia da fadiga. Na essência, o trabalhador, por mais bronco que seja,
intui que nada é mais abjeto e mais vil do que o trabalho... mas, estranhamente,
permanece nele e em sua jaula, como se estivesse perdido num transe hipnótico.
Precisa comer! E esta compulsão pela comida faz do estômago o precursor de
todas as escravidões. É por isso que a passagem dos alimentos, da natureza para
os armazéns, foi o golpe definitivo contra todas as possibilidades de
autogestão.
E
assim, século após século o inferno do trabalho não cessa, fazendo com que o
circo da honradez laboral permaneça intacto, mesmo quando os sujeitos já não
possuem mais nem sequer um nome, onde o tempo é tudo e onde cada um só vale
pelos músculos que tem. Como não existem mais parâmetros éticos, ficam
reduzidos a tolos alienados e cansados que sentem-se extremamente felizes com
os sábados e com os domingos, quando podem, finalmente, repousar e esconder-se
de um mundo que, sempre que pode, os degusta e os cospe...
Daí
a importância de lembrar entre uma jornada e outra-, que o trabalho é a raíz
de um mundo desenraizado; o crack do povo e o espírito capitalista de uma época
decapitada, cujo paradoxo mais cínico é a tentativa de enriquecer toda a
humanidade pauperizando todos os seus elementos.
Ezio
Flávio Bazzo
Blog
“Murro das Lamentações”
Nenhum comentário:
Postar um comentário