segunda-feira, 4 de julho de 2016

Milenar Miséria

      “E nesse momento em que uma casa após a outra soltava pela bocarra escancarada de seus portões o fedor bestial de fezes, nesse canal de decaídas moradias ao longo do qual transportavam o poeta numa liteira levantada bem alto, de modo que ele podia, devia avistar os míseros quartos; ferido pelas pragas que o mulherio lhe lançava raivosa, estupidamente na cara, ferido pela choradeira dos lactentes enfermiços, deitados em trapos e farrapos, e que estavam presentes em toda a parte, ferido pela fumaceira de gravetos de pinho fixados em paredes gretadas, ferido pelo ranço dos fogões e das velhas, sapecadas, emlambuzadas frigideiras, ferido pelo aspecto atroz dos anciãos quase desnudos, esclerosados, que estavam de cócoras em todos esses pretos, cavernosos casebres, nesse lugar, começou a ser acossado pelo desespero; nesse lugar, entre as tocas da sevandija, nesse lugar, diante da mais extrema degradação e do mais sórdido apodrecimento, nesse lugar, em face de tal encarceramento mais profundamente terreno, à vista desse ambiente de partos cruelmente dolorosos e mortes cruelmente abjetas, onde entrada e saída da vida se entreteciam na mais estreita fraternização, uma que outra sombrio presságio, uma que outra anônima no sonho obscuro de males desligados do tempo, nesse lugar da mais anônima tenebrosidade e lascívia, nesse lugar viu-se o poeta pela primeira vez forçado a cobrir o rosto, teve que fazê-lo sob o estridor das jubilosas gargalhadas do mulherio, teve que recorrer à cegueira proposital, enquanto o carregavam, degrau por degrau, pela escada da viela da miséria.”


      (“A Morte de Virgílio”, Hermann Broch, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982, Página 55.)

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