ASSIM
FALOU VARGAS VILA
Foi
num amontoado de livros desencapados e prestes a serem jogados no lixo que lá
por 1968, focinhando numa loja de objetos usados, deparei-me, por primeira vez,
com um exemplar do Rosal pensante, de autoria de um sujeito até então
desconhecido e com um nome ridículo: José Maria de la Concepción Apolinar
Vargas Vila Bonilla, nascido em 1860 na Colômbia e morto em 1933 em Barcelona.
Só pensei em negociar o preço daquele verdadeiro restolho depois de ficar
hipnotizado com a leitura destas duas linhas:
Curar-se
de certas excentricidades, é fazer como os outros: cretinizar-se; a primeira
condição de ser coletivo é ser abjeto.
Talvez
hoje esta frase não tenha mais o efeito iconoclasta daquela época, quando tinha
apenas dezenove anos, vivia no mundo da lua, confinado em casas estudantis,
embriagado de idealismos, sem a mínima idéia de que o homem era um «animal
méchant par excellence», e quando as veraneios chapas-frias do DOPS e do
exército, em seu teatro ditatorial e burlesco subiam e desciam em alta
velocidade, vinte e quatro horas por dia pelas ruas e becos gelados de
Curitiba. O livro, além de ser um viveiro de traças, também fedia. De cócoras,
fascinado, li e reli um segundo parágrafo:
"O
escritor que fala por diminutivos, é porque pensa diminutamente; os heróis de
Homero, não combatiam com alfinetes; quando leio versos cheios de «cabecinhas
loiras», «virgenzinhas queridas», «manecitas liliales», penso instintivamente,
em todos esses rimadores, com almas de costureiras sentimentais, que infestam
nosso Parnaso..."
Foi
meu primeiro e definitivo encontro com Vargas Vila, esse blasfemo furacão do
verbo que não se assemelhava em nada aos da zoologia literária da época. Foi
minha primeira leitura desse contemporâneo de Ruben Dario, autor de umas
dezoito mil páginas, entre as quais as do famoso Íbis, texto que por ter levado
diversas pessoas a se matarem ficou conhecido como a Bíblia do Suicídio.
Sem
falar dos anarquistas e dos desvairados mexicanos que de 1979 a 1981 invadiam
meu pequeno apartamento da calle Copilco a qualquer hora do dia e da noite para
discutir os textos de Vargas Vila e nem da prostituta goiana que mantinha
permanentemente sobre o criado mudo, ao lado de uma oração de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, um exemplar de seu Lírio Negro, foi o Jorge, do Armazém do
livro usado de Taguatinga quem, em 1997, ligou para comunicar-me que havia
comprado a obra vargasviliana completa da viúva de um dentista de Anápolis.
Fechamos negócio por telefone. Nos dias seguintes, sob os estrondos da
tempestade que caiu sobre a cidade, folhear um por um daqueles volumes
publicados pela Sopena de Barcelona, e ainda por cima, rabiscados pelo dentista
recém morto, foi uma viagem quase kardecista e quase nirvânica.
Estava
lá, tudo lá o pouco que já sabia e tudo o que estava por saber da obra desse
novelista militante, panfletário, jornalista, niilista, ateu, anticlerical e
obsessivamente indignado com a palhaçada fastidiosa reinante na América Latina,
principalmente com o carneirismo vergonhoso de sua política e de suas
assembléias. Exageradamente ético, erótico e libertário, (apesar de ter vivido
uma relação simbiótica e doentia com a mãe), V.V. odiava a velharia
supersticiosa e os caudilhos criminosos que se sucediam por todos os países do
continente, da mesma maneira que detestava a dominação imperialista dos
yankees, contra quem escreveu Ante los bárbaros. Banido de sua terra natal
viveu na Venezuela e em NY onde, em 1892, trabalhou como redator do jornal
anticlerical Progresso e fundou as revistas Hispano-América e Némesis. Com sua
mudança definitiva para a Europa, incluiu em sua agenda libertária a luta
contra as conhecidas máfias intelectualistas, contra os fabricantes de
filosofias para entregadores de pizza e contra os conhecidos PHDéspotas que só
se valiam da escrita para ruminar e puxar o saco de quem estava no poder.
Apesar
de toda sua erudição, Vargas Vila foi também um escritor popular, lido
compulsivamente pelos marinheiros, pelos artesãos, pelos presidiários e
marginais de todos os calibres. Contemporâneo de Freud, admirador de Ibsen,
amigo de Pompeyo Gener e leitor de Stirner, deve ter navegado exaustivamente
tanto pela psicanálise como pelo anarquismo individualista e ter arrancado daí
não apenas o sentimento negativo com o qual construiu seu niilismo, mas também
a sacação subterrânea do Ser, através da qual deu realidade e vigor tanto à sua
filosofia como à sua análise dos homens, do mundo e da política latino
americana, dessa parte quase maldita do continente, com seus sucessivos ladinos
e empedernidos governantes de turno.
Com
seus livros, sua vida e seu discurso radical, não apenas contra a ignorância e
a bestialização social, mas também contra o absurdo da existência e contra
todas as hipóteses divinas (Deus não me expulsou do céu, eu sim expulsei Deus
de meus céus interiores. Nisso fui maior que Satã), era previsível que fosse
abrir frentes de indignação, de ódio e de inimizades por todos os lados, mas,
principalmente, entre os apóstolos da demagogia. Se nunca se rendeu a elas, foi
porque era doentiamente convicto de que
"a
verdadeira eloqüência deve produzir sobre os povos o efeito do furacão sobre as
ondas, o efeito das chamas sobre o feno seco, da chispa sobre a pólvora, isto
é, deve produzir a tormenta, o incêndio, a explosão e a tragédia
irremediável".
E
mais:
"Que
aquele que põe fé nos outros, perde a única fé que salva: a fé em si
mesmo".
Na
Espanha de Franco seus livros foram marcados com o ponto vermelho da censura e
na Colômbia a igreja ameaçava excomungar quem lesse suas novelas. Seus textos e
fotos chegaram a ser queimadas em praça pública. "Em suas obras não é
apenas o erotismo sensualista do naturalismo o que se respira, -dizia o padre
Jesús M Ruano- ali se faz apoteose do pecado, a incitação aos crimes mais
repugnantes. Ali brota como emanação pútrida o ódio sistemático à pureza dos
costumes, à dignidade, à generosidade e à racionalidade do homem". Além
dos padres e dos déspotas políticos, também os escritores que sempre florescem
em abundância nos quartinhos de fundo dos palácios, das paróquias, da imprensa
oficial e dos antros diplomáticos não se cansavam de tentar desqualificá-lo.
Não
escrevo para deleitar, escrevo para combater, contestava–lhes Vargas Vila, em
Prosas-laudes.
Em
1952, dezenove anos após sua morte, o crítico José J. Guerra afirmava em um
artigo que em todos os livros de Vargas Vila "desde a primeira até a
última página só se encontrava gritos satânicos de rebelião e de insultos
contra tudo o que existe de mais nobre e mais sagrado para o homem".Até o
velho Borges, o ilustre, cego e erudito diretor da Biblioteca Nacional Argentina,
na única vez que fez referência a Vargas Vila, em Historia de la Eternidad,
publicada no ano da morte de Vargas Vila (1933), no capítulo intitulado Arte de
injuriar, referindo-se a uma crítica deste a Santos Chocano, tentou eclipsá-lo.
E
é exatamente por isso, por Vargas Vila ter sido proibido por Franco,
excomungado pela igreja colombiana e por ter causado tanta indignação entre a
canalha detratora que o estamos revisitando e republicando.
Ressuscitá-lo
no Brasil, principalmente em Brasília, nesta cidadela de caixotes, de
burocratas errantes, de botecos, de novos ricos delirantes, de filhinhos e
netinhos de agentes da ordem, de escritorzinhos engravatados e de shoping
centers, neste momento histórico e político broxante, com a América Latina
ainda mergulhada em seus esgotos e ainda de joelhos diante da mesma quadrilha
de sua época, é quase um dever de quem pensa e de quem tem desprezo pela
pobreza mental generalizada do cotidiano. É quase uma obrigação de quem tem
horror a esses magotes ainda não nascidos plenamente que além da televisão e
das feijoadas só conseguem dialogar sobre os ângulos e os pregos da cruz. Dever
de quem se sente asfixiado no meio de toda essa ignorância instituída, desse
atraso social incurável onde todos os projetos pretensamente revolucionários
foram para a merda, e onde a vida se resume em falar mal dos outros, em ir às
soirées, ter um emprego, uma casa, uma falsificação de Picasso, um carro e o
certificado de filiação a uma das tantas e nefastas agremiações idólatras,
idealistas e teológicas que, apesar do poder difamatório que dispõem, não são
mais do que prostíbulos de infâmia.
Sim,
é oportuno reeditá-lo neste momento, quando os capuchinhos da crítica literária
nacional não conseguem fazer outra coisa além de bajular os vivaldinos do
momento ou de reincensar Guimarães Rosa, Machado de Assis, Graciliano e outros
vaselinas. Ah, será um gozo imenso fazer Vargas Vila circular pela cidade e por
sua periferia onde a ralé desiludida se despedaça todos os dias a tiros,
facadas e pauladas depois de ouvir os pastores, os padres e os gurus mentindo
descaradamente nos palanques, nas dioceses ou nos programas de televisão!
Acreditem: será um gozo imenso trazê-lo para o cenário, principalmente hoje,
quando os mercenários, as matronas e os religiosos ocupam praticamente 90% das
cadeiras no Parlamento. Quando os banqueiros, os donos de terras, os políticos,
os representantes da imprensa, dos sindicatos, das igrejas e das indústrias
(todo esse espectro vil das antigas monarquias) estão cada vez mais íntimos e
próximos uns dos outros e quando são vistos juntos, enchendo a cara nos mesmos
banquetes e fazendo pouco caso das desgraças que se abatem sobre cinqüenta ou
sessenta milhões de pessoas. Quando são vistos abraçados tramando publicidades
enganosas, ludibriando aos adolescentes com esportismos e porcarias
tecnológicas, aos velhos com uma compaixão burocrática e com medicamentos
falsificados e, às mulheres, com o modismo homomaníaco, obsessivo e burro de
sempre.
Será
mais do que oportuno republicar Vargas Vila agora, em português (esse idioma de
pescadores), quando os estelionatários de todas as classes estão afinados e
irmanados nos assuntos do agiotismo internacional, usando os mesmos ternos, as
mesmas cuecas, as mesmas máscaras, as mesmas loções e a mesma linguagem. Quando
a bandidagem republicana está silenciosamente rateando os fundos do Tesouro
Nacional, devastando as matas nativas para plantar soja, loteando e explorando
comercialmente os míseros prazeres e as míseras possibilidades de lazer
acessíveis a uma multidão moribunda e deprimida que, por sua vez, não sabe
fazer outra coisa além de competir, perseguir e infernizar-se mutuamente a
vida, seja no confinamento doméstico ou nas arquibancadas desse prodigioso e
olímpico circo. (y, ellos, se embriagan con el humo de la adulación, que la
prosa mística de los conservadores, y la retórica plebeya de los jacobinos, les
administran a alta dosis, y se creen eternos…). Delírio e desatino que
realmente ninguém sabe quando terá fim, uma vez que os setores ditos cultos da
atualidade –da literatura ao cinema, da tecnologia ao turismo e à sociologia
etc, etc-, conspiram descaradamente para o engrandecimento da putaria política
e para o aprofundamento da idiotia coletiva.
Por
fim, este resgate da obra de Vargas Vila representa a realização máxima de
minha vida de leitor. Considero esta releitura e esta publicação de seus textos
como a mais importante de minhas contribuições na tarefa insólita de
diagnóstico e de desmascaramento dessa opereta fajuta e desse music-hall
pseudo-civilizatório em que nos atordoamos. Desse picadeiro patético onde até a
pequenez própria –parafraseando Otto Fenichel- pode ser motivo de gozo quando
serve para dar ao idiota a ilusão de que participa da grandeza do outro. Além
de um maremoto nas consciências dos leitores, desejo que este livro também
estremeça as estruturas frígidas e canônicas do palavrório irracional vigente e
da língua.
Ezio
Flavio Bazzo
Num
café da Mouraria (Lisboa)
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